Thaís Silva do Nascimento, de Cuiabá (MT)

 

Criada em um assentamento em Mato Grosso, Thaís é o tema da 7ª reportagem da série OBMEP 10


Dos pinguinhos no papel, a trajetória da futura doutora Thaís

Os pinguinhos de tinta que, cuidadosamente, a cearense Maria Aparecida da Silva Nascimento deixava cair num pedacinho de papel ajudaram sua única filha, Thaís Silva do Nascimento, a desenhar as letras e os números, antes mesmo de ir para a escola. Mas, naquela casa simples de um assentamento no interior de Mato Grosso, a menina iria aprender não apenas a ler, escrever e fazer contas. A maior lição ensinada pelos pais era que somente os estudos poderiam criar oportunidades de uma vida melhor para Thaís. E não é que deu certo? Aos 23 anos, a jovem está fazendo doutorado em Matemática na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e acaba de ingressar, por meio de um concurso, na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), onde desde maio dá aulas de cálculo e matemática elementar como professora assistente.

- Quando eu era pequena, passava em frente à escola agrícola e pensava: “um dia vou estudar aqui”. Mas, aí, veio a matemática e mudou tudo – conta a moça.

E como mudou. Ainda mais quando se pensa na trajetória de Thaís. A menina nasceu em Mombaça, no Ceará, filha mais velha de Maria Aparecida e Ari. O casal teve três filhos: uma menina que morreu aos 4 meses – “acho que foi meningite, mas não tinha médico na cidade para dizer”, conta a mãe – e um menino que nasceu prematuro e sobreviveu apenas um mês. Dona Cida teve cólera durante a gravidez. A tristeza com a perda dos filhos e a seca na cidade, que fica a 600 quilômetros de Fortaleza, empurraram a família para longe do Ceará. Ari decidiu que iriam até Brasília e, de lá, tomariam o primeiro ônibus que partisse para outro lugar. Assim, chegaram a Tangará da Serra, em Mato Grosso.

Ari já conhecia a região e começou a procurar emprego. Quase dois anos de batalha, até surgir a oportunidade de ingressar no Movimento dos Sem-Terra e tentar uma vaga num assentamento. Cida fez uma ressalva: só aceitaria se não houvesse invasão de fazendas. Os três foram, então, morar num acampamento na beira da estrada, com mais de mil famílias. A escola mais próxima ficava a 15 quilômetros, e a condução passava às 4h40m da manhã para pegar Thaís. A esta altura, porém, a menina já sabia ler e escrever, graças aos tais pinguinhos que a mãe fazia em cadernos para ela copiar.

- Era muito cansativo. Às vezes, meus pais combinavam de me deixar dormir até mais tarde, para “descansar o juízo”. Mas eu acordava na hora e saía correndo. Não queria perder a aula de jeito algum – conta a hoje professora.

Ao que tudo indica, Thaís estava destinada ao magistério desde o berço. O primeiro presente que ganhou da avó materna, antes de completar um mês de vida, foi um caderno. Talvez fosse uma aposta no futuro, já que a mãe só tinha completado o 3º ano do Ensino Fundamental e planejava “fazer o que fosse preciso” para a menina, quem sabe, ter uma profissão.

- Fui alfabetizada pela minha mãe. Ela me ensinou até a fazer prova real, sem saber o que era isso. Até o 8º ano do Ensino Fundamental ela estudava comigo, mesmo tendo parado na 3ª série – lembra.

E, desde o primeiro dia numa sala de aula convencional, Thaís chamou a atenção dos professores. Com um mês de escola, a diretora chamou dona Cida e avisou que ia tirar a menina do CA e botar no 1º ano. É que, como sabia ler e escrever, ela assumia o quadro-negro para ajudar os colegas. No fim do período, com apenas 6 anos, Thaís já estava concluindo a 2º série.

- Aí, fizeram uma escola no assentamento e queriam que eu voltasse para o pré, por causa da idade. A diretora não se conformou de eu estar tão adiantada. Minha mãe foi lá e brigou por mim. Decidiram que eu iria fazer uma prova e que, se tirasse mais de 9, não precisaria fazer as séries anteriores. Tirei 9,5, mas, mesmo assim, tive que fazer todos os exercícios dos outros anos – diz a moça.

A partir daí, a vida escolar seguiu sem maiores atropelos, mas com as dificuldades típicas das escolas rurais: distância de casa, estradas ruins, professores despreparados... A família se virava como podia: seu Ari trabalhava em fazendas, capinando ou colhendo feijão e algodão. Dona Cida cuidava de meia dúzia de vacas que tinham comprado com um dinheirinho guardado. Já moravam num sítio, em Campo Verde, a cerca de 120 quilômetros de Cuiabá. Nas horas vagas, ajudava Thaís nos estudos e nem deixava a menina se aproximar das tarefas domésticas.

- Graças aos meus pais, pude me dedicar integralmente aos estudos. E isso, lógico, que fez diferença.

Em 2005, Thaís estava no 2º ano do Ensino Médio quando um professor propôs que ela fizesse a OBMEP. A adolescente nem se achava tão talentosa assim para a matemática – afinal de contas, todos aqueles problemas que ela copiava no colégio e levava tempo para resolver, seu Ari batia o olho e dava a resposta de cabeça. O DNA falou mais forte e ela encarou a missão. Achou difícil, mas, na segunda fase, conquistou uma medalha de prata. Carimbou o passaporte para o Programa de Iniciação Científica Jr. (PIC) no ano seguinte, na UFMT. Na primeira aula, em 29 de julho de 2006, Thaís e dona Cida saíram de Campo Verde com R$ 30 na carteira para passar dois dias em Cuiabá.

- Descobrimos que tinha uma ajuda de custo de R$ 100. Voltei para casa abonada – brinca dona Cida que, de tanto frequentar a UFMT, conhece cada tijolinho do prédio do departamento de Matemática.

Numa das viagens, Thaís pediu à mãe para ir ao shopping. Dona Cida deixou. Na volta, a menina trazia um milk-shake, coisa que ela jamais tinha experimentado. O talento da filha, por sinal, já fez a corujíssima mãe andar de escada rolante e de avião, numa viagem recente ao Ceará.

- Fiz o PIC em 2005 e 2006. Quando pisei na universidade, pensei: “é, acho que não quero mais fazer a escola agrícola”. Aqui, o professor Martinho (da Costa Araújo) meio que me adotou. Foi ele quem fez minha inscrição para o vestibular – afirma Thaís. – Ele disse: “essa menina vai passar no vestibular, vai estudar aqui e, com 21 anos, estará formada”.

Aos 16 anos, Thaís ingressou na licenciatura em Matemática. Antes disso, foi monitora da OBMEP e ajudava a corrigir as provas. Hoje, toda vez que conversa com adolescentes, incentiva a participação nas olimpíadas.

- A OBMEP muda a sua forma de estudar e de pensar. É para a vida toda – diz.

- Desde o primeiro dia de aula, a Thaís já se destacava, apesar de muito tímida. Ela era curiosa, fazia perguntas elaboradas... Tinha um talento ali, mas precisava de estímulo para desabrochar. Construir o saber não é fácil. E você precisa estar atento o tempo todo, porque os jovens que vêm para o PIC, em sua maioria, enfrentam as maiores barreiras para chegar até aqui – completa o professor Martinho.

No dia da formatura, dona Cida teve “um suadouro” e mal conseguiu chegar à festa. E olha que a filha já fez o mestrado e, daqui a um ano e meio, encerra o doutorado. O namorado Nailton, sitiante em Campo Verde, não foi tão longe nos estudos, mas também morre de orgulho da jovem professora, e nem se incomoda quando ela comenta que sonha em batalhar uma bolsa fora do Brasil.

- Eu já avisei a ele: se a nota dela baixar, sou eu quem termina o namoro – ameaça a orgulhosa mãe.

- Casamento, só depois do doutorado – acrescenta a obediente Thaís.




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