Os duzentos e trinta e dois quilômetros que separam a capital do Rio Grande do Norte da cidade de Cruzeta revelam um lado do Brasil que muitos só veem nos telejornais. A seca, que para grande parte do país é algo distante do cotidiano, é a realidade do povo que vive ali.
Às bordas da estrada, o mato seco, o chão duro, o gado magérrimo e a constante presença dos mandacarus revelam imagens da vida dura do povo na região. Não à toa, em suas aventuras para acompanhar a Guerra de Canudos o jornalista e escritor Euclides da Cunha determinou uma frase que reflete bem a vida dos potiguares que vivem longe do mar: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
E coloca fortaleza nisso. Em uma cidade onde chega a faltar água cinco dias na semana, a população se desdobra para vencer as adversidades e ainda manter um sorriso sempre aberto no rosto.
É neste cenário rodeado pela seca que fica a Escola Municipal de Ensino Fundamental Cônego de Ambrósio Silva, destaque da OBMEP em 2015. O município de 8.155 habitantes mostrou-se um gigante no Estado conquistando duas medalhas de ouro, uma de prata, três de bronze e oito menções honrosas.
O que pode parecer pouco para outras regiões do país, para Cruzeta é uma conquista e tanto. A “culpa” de tudo isso é de uma professora que resolveu dar de ombros para as críticas de quem acha que professor não ganha o suficiente para se dedicar além das aulas regulares e decidiu usar sua casa como sala de aula para que seus alunos brilhassem na OBMEP. E como deu certo!
David contra Golias
Há quatro anos, a Maria da Guia Soares Afonso de Araújo percebeu que seus alunos tinham potencial para conseguir bons resultados na olimpíada de matemática quando dois deles conseguiram menção honrosa. “Em anos anteriores tinha tentado dar aulas para ver se os meninos se destacavam na OBMEP, mas não tive sucesso”, conta.
Para ela, o erro estava em tentar ampliar o conhecimento de todos os alunos de cada nível. Após anos de experiência ela garante: “não funciona desse jeito”. A partir deste momento Maria da Guia resolveu que era necessário apostar nos alunos com interesse em Matemática não só na sala de aula, mas fora dela também.
Daí surgiu a ideia de seu cursinho extraclasse e a história mudou. Com aulas em sua casa, uma vez por semana, a professora passou a reforçar os estudos em Matemática para alunos dos três níveis. Às sextas-feiras ela abre as portas da sua casa para receber as quatro turmas de alunos dedicados à OBMEP. Em aulas de uma hora, ela agrupa os melhores estudantes de cada nível e os ajuda na preparação para a olimpíada.
Em 2013, o time de Cruzeta colheu os frutos deste esforço conjunto. “Intensifiquei o trabalho e tivemos dois medalhistas e cinco menções honrosas. O trabalho foi evoluindo até chegarmos a 14 premiados em 2015”, comemora.
Gabriel Hudson de Medeiros foi um dos alunos que fizeram com que Maria da Guia insistisse nas aulas extraclasses para a OBMEP. Com uma menção honrosa, uma prata e dois ouros, o garoto é o maior vencedor de Cruzeta. Ele conta que a participação no PIC e o incentivo da escola o levaram à conquista dourada.
Mais do que isso, as conquistas na OBMEP ajudaram Gabriel a “crescer na vida, a procurar um futuro melhor”, tanto é que ele já decidiu que vai se graduar em Matemática. “Quero ser professor e ensinar aos meus alunos que, se você estudar, a OBMEP pode te ajudar bastante. Eu pretendo passar isso a eles”, garante.
Mas o segredo do sucesso não está apenas na dedicação de Maria da Guia fora da escola, mas sim na forma como ela trata e enxerga esses jovens cheios de sonhos. Os alunos a adoram a ponto de seus olhinhos brilharem quando falam de sua influência nos resultados na OBMEP.
Jadilson José de Oliveira Santos, menção honrosa em 2015, é um dos estudantes que acabou “picado” pelo bichinho da Matemática por conta da professora. “Já gostava da matéria, mas quando a [Maria] da Guia começou a falar que era bom fazermos a OBMEP para conseguirmos destaque nas cidades, no Estado e no país. Isso me incentivou a estudar”.
Aplicado nos estudos, Jadilson pretende participar da olimpíada até o 9º ano e sonha com o ouro. Para ele, a OBMEP “dá um futuro para os jovens” e isso abriu seus olhos para seguir estudando. “A Matemática é um incentivo muito grande mesmo para quem estuda”.
Para a educadora a chave dos bons resultados está em se entrosar bem com os alunos. “Observo aqueles que se destacam na Matemática e foco neles para mostrar a importância do conhecimento. Quando estudamos, adquirimos conhecimento e só temos a ganhar com isso. Então começo a incentivá-los e eles vão pegando gosto a cada dia”.
O lado bom da história é que Maria da Guia não está sozinha nessa empreitada. A professora garante que as conquistas são reflexos de um trabalho em conjunto com os alunos, as famílias e a própria escola.
O apoio da prefeitura e da secretaria de educação do município também têm sido cruciais nos últimos quatro anos. A criação do piso salarial na região deu melhores garantias para os professores que puderam se dedicar melhor às aulas e até no aperfeiçoamento profissional. Para o prefeito Erivanaldo Aquino Dantas, os resultados da escola são sinônimos do investimento realizado na valorização dos professores e na infraestrutura das escolas. “Fiz o máximo que pude pela educação porque sabia que os resultados iam aparecer”, afirma.
Ronaldo Macedo, secretário de Educação de Cruzeta, acrescenta que o sucesso dos alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Cônego de Ambrósio Silva incentiva a educação em todo o município e acaba levando mais jovens para as salas de aula. “As crianças e os pais passaram a ter mais credibilidade na escola. Avaliamos que a qualidade de ensino aumentou bastante, pois os professores passaram a se profissionalizar e os alunos começaram a ter mais interesse porque veem os colegas ganhando medalhas e também querem ganhar uma”.
Multiplicando sonhos
É interessante notar como essa busca por bons resultados na Matemática tem se multiplicado inclusive pela cidade. A boa fama da professora e da Escola Cônego de Ambrósio Silva tem feito muitos pais procurarem matrícula para seus filhos no local para que participem da OBMEP e, consequentemente, sejam alunos de Maria da Guia.
As medalhas de seus alunos despertaram em outros jovens o desejo de participar da competição, fazendo com que o trabalho ganhe mais adeptos e, quem sabe, possa tornar Cruzeta uma potência na Matemática.
“Quando um aluno vê outro ser premiado ele sente aquele desejo de chegar aonde o outro chegou. Eu os motivo muito mostrando que todos são capazes. A única coisa que têm de fazer é estudar. Se estudarem, todos têm capacidade e oportunidade de ser premiados na OBMEP. Percebo que a cada ano isso está incentivando mais alunos”, afirma a educadora.
Marlon Natan Baracho de Oliveira é um desses jovens que se viu motivado a se debruçar nos estudos da Matemática em razão das medalhas dos colegas na OBMEP. De poucas palavras, o tímido rapaz que ganhou o ouro em 2015 garante que as aulas de Maria da Guia o ajudaram a ficar mais disciplinado e a melhorar nos estudos.
Apesar do ouro, não pensa em largar tão cedo a OBMEP. “Vou continuar até o último ano. Quero conseguir o máximo de ouros que puder”. Ele ainda vai mais longe, sonha em fazer graduação na disciplina, pois descobriu que ela faz parte de tudo. “Você vê a Matemática em qualquer canto. Se você não souber matemática, não arranja um emprego bom”.
Vale mais que dinheiro
O sucesso dos estudantes de Maria da Guia na OBMEP é motivo de orgulho da professora. Ela não se importa de usar seu dia livre para dar aulas para suas turmas de “atletas olímpicos”. Para ela, tudo isso é apenas parte de seu trabalho como educadora. “O salário de um professor não é condizente com o trabalho, mas o que a gente conquista ao ver os alunos se dando bem com a sua participação na OBMEP não tem dinheiro que pague. A educação é uma das profissões mais gratificantes para o ser humano”.
Realizada profissionalmente, a professora insiste que dinheiro nenhum paga a sensação de ver os bons resultados dos estudantes e tem consciência do seu papel para a vida desses jovens. “Não sei em que área no futuro profissional eles trabalharão, mas sei que plantei uma sementinha”.
E essa semente também foi lançada em sua própria casa. Sua filha, Hedviges Mitzi Soares de Araújo, conquistou o bronze em 2015. “Matemática sempre foi minha matéria favorita e com as aulas dela — Maria da Guia — foi mais um incentivo para participar da olimpíada”.
Hedviges também sonha alto e quer o ouro. Aguarda ansiosamente pelo resultado da OBMEP 2016, pois está confiante em garantir uma medalha de prata. Mas, independentemente do resultado, ela reconhece a importância de ganhar qualquer prêmio na olimpíada. “É um incentivo a mais saber que são poucos que conseguem alguma premiação em todo o Brasil. Ser uma delas já é um grande sucesso”.
Prestes a se aposentar a daqui três anos, Maria da Guia reluta em pendurar o giz e o apagador, pois sente que ainda tem uma missão a cumprir. “Sinto-me realizada com o trabalho e em poder ver os olhinhos deles brilhando de felicidade com a conquista, de ver a família feliz, comemorando. Isso atinge muitas pessoas. Quando um aluno aqui é premiado isso se espalha. Eu me sinto bem com isso e espero poder contribuir por mais anos. Não sei se vou querer me parar”, conclui.